Tradução do artigo original “The Nature of Amida”, escrito por Nick Bea, publicado no blog Buddhism: The Way of Emptiness. Tradução feita integralmente pelo Blog Contra, uso livre para copiar e distribuir. Acesse aqui o artigo original.


A Natureza de Amida

Nick Bea Buddhism: The Way of Emptiness

No Budismo Mahayana tradicional, a questão da natureza de Amida foi abordada em termos da doutrina trikaya que distinguia três personificações do Buda, o nirmanakaya (o Buda Shakyamuni histórico), o sambhogakaya (o corpo da compensação de um bodhisattva que se tornou um buda, referido como um buda celestial), e o dharmakaya (realidade última). Como corpo de compensação do bodhisattva Hozo (Dharmakara, em sânscrito), que fez os votos de estabelecer uma Terra Pura para aqueles espiritualmente incapazes de alcançar a iluminação por si próprios, Amida claramente se encaixava na descrição de um buda celestial.

Thomas Kasulis, no entanto, observa que “parece peculiar que Shinran defenda a fé absoluta em uma forma não-absoluta do Buda e que, como nós podemos esperar, sua teoria é mais complicada. De fato, para Shinran, Amida é a “personificação cósmica” como o dharmakaya, realidade última, natureza de buda – e também a personificação cósmica como expressão heurística (meios hábeis). A questão é: como algo pode ser a personificação “cósmica” de meios hábeis, se isso é o que um buda celestial é para ser?

Neste ponto eu gostaria de apontar para a entrada de Dennis Hirota sobre o Budismo Terra Pura japonês na Enciclopédia de Filosofia de Stanford, onde encontrei uma explicação mais direta. Hirota é crítico para o modo que acadêmicos modernos entendem a natureza de um buda celestial.

O ponto de partida de Hirota em sua seção sobre a natureza de Amida é uma comparação entre o Buda Shakyamuni e o Buda Amida. Ele escreve: “Enquanto Amida, Buda da luz infinita e vida eterna, possa ser considerado como a personificação “celestial” do conhecimento-compaixão perfeito, e a narrativa de sua conquista no passado inconcebível como “mítica”, Gotama, conhecido pelo seu título honorífico Buda Shakyamuni, é reconhecido como uma figura histórica […] no século seis AEC. É comum dizer, portanto, que Shakyamuni pertence ao reino do fato histórico e da existência real, enquanto Amida é fictício […] Shakyamuni, se tornando “o desperto” através de práticas meditativas, ensinou sua realização para outros, e dentre seus ensinamentos está atribuído a ele a história do Buda Amida. A história de Amida é considerada um “meio hábil” (hōben) ou uma ferramenta mítica para o ensino.

Seated Amida Nyorai, Kamakura period, 12th-13th century, wood with gold leaf and inlaid crystal eyes – Tokyo National Museum

Essa, Hirota adiciona, foi também a visão dos “budistas sofisticados como os das escolas Tendai, Shingon e Zen que sempre reconheceram que Amida é apenas uma “metáfora” ou “símbolo” hábil para a realização histórica de Shakyamuni”.

De acordo com Hirota, essa interpretação não reflete as visões do Budismo Terra Pura primitivo. Ele escreve: “Há uma continuidade básica na perspectiva sobre Amida entre as escolas mahayana” que “são diametralmente opostas a presunções modernistas. Para os budistas mahayana, a realidade não reside fundamentalmente na existência histórica de Shakyamuni como tal, mas sim naquilo pelo qual ele é reconhecido como buda, ou no que é sua força matriz de aparição no mundo, sua obtenção da budeidade e seu ensinamento do Dharma. A realidade assume “forma” para emergir na consciência dos seres sencientes e, assim, guiar os seres” além de apegos e de pensamento discriminativo. Em outras palavras, natureza búdica, por assim dizer, “cria” ou “manifesta” como forma de um buda celestial, assim como a de um buda histórico para gerar um movimento circular entre “realidade sem forma” e “mundo das formas”. Hirota, aqui, cita um texto de Honen: 

“Shakyamuni descartou a Terra Pura suprema e apareceu neste mundo corrompido; isso era para expor o ensinamento da Terra Pura e, encorajar os seres sencientes, para levá-los para o nascimento na Terra Pura. Tathagata Amida descartou este mundo corrompido e emergiu na Terra Pura; isso era para guiar os seres sencientes deste mundo corrompido e levá-los para o nascimento na Terra Pura. Isso é nada mais que a intenção fundamental com que todos os budas saem da Terra pura e emergem no mundo corrompido”.

Na visão de Honen, então, “Shakyamuni e Amida funcionam como aspectos emparelhados de um movimento de atividade compassiva no ensino e orientação, da realidade última ao mundo corrompido, e do mundo corrompido a “Terra Pura suprema” isso é a morada de todos os budas“. Aqui, Hirota diz, Honen inicia com Shakyamuni, “mesmo que a obtenção do estado de buda de Amida tenha ocorrido éons antes do aparecimento de Shakyamuni. Sem Shakyamuni, Amida iria permanecer desconhecido para os seres deste mundo [mas] sem Amida, Shakyamuni não haveria meios efetivos para a liberação dos seres […] No lugar de uma cronologia linear, nós temos um movimento entre o atemporal e o tempo mundano, no qual a temporalidade da causalidade kármica e o pensamento discriminativo são quebrados”.

Hirota então explica que, ao assumir a noção de um “movimento entre o atemporal e o tempo mundano”. Shinran “deu prioridade ao Amida”. Assim, “para Shinran, é a força matriz da sabedoria-compaixão que fundamenta a existência histórica de Shakyamuni – que de fato fez ele um buda – e essa sabedoria-compaixão é por si própria a vida de Buda Amida. Portanto, a existência histórica de Shakyamuni pode ser entendida como uma manifestação de Amida, talvez uma entre inúmeras outras”.

Shinran justifica sua visão invocando o Sutra do Tathagata de Vida Imensurável, onde é dito que “antes de expor o dharma, o Buda entra em um samadhi profundo e mergulha na sabedoria não discriminativa que transcende palavras e conceitos. Emergindo do Samadhi, ele ressurge no reino das palavras e responde às perguntas de seus discípulos. Embora suas palavras sejam as do discurso humano comum, elas são a expressão do samadhi que ele alcançou […] Com base nisso, ele revela a história de Amida, pois Amida é o Buda Primordial que incorpora a essência de todos os Budas”. Isso significa que “se não fosse por Amida, cuja budeidade está no coração do samadhi de grande tranquilidade, o próprio Shakyamuni não seria Buda”.

Logo, a relação entre Amida e Shakyamuni não é a de duas figuras distintas, ou entre o símbolo religioso ensinado e o professor. Como Kasulis suspeitava, Amida está tanto “na realidade sem forma e no mundo das formas, no eterno e na história“. Amida é a personificação do dharmakaya (realidade sem formas), e a personificação de um “buda celestial”, que não é apenas uma ferramenta humana para ensinar, mas, nós poderíamos dizer, Amida-como-realidade última expondo a verdade. Assim como Dainishi é dito ser no Shingon. Kasulis chega a uma conclusão bastante similar.

Hirota conclui a sessão sobre a natureza de Amida observando que “enquanto as tradições meditativas do budismo tendem a enfatizar […] a apreensão da realidade sem forma sem a imposição de discriminação egocêntrica, a tradição Terra Pura está focada no trabalho compassivo da realidade para despertar seres incapazes de erradicar o pensamento conceitual […] Mais tarde na vida, Shinran adotou o termo jinen, “naturalidade” ou “ser feito para se tornar assim por si mesmo”, para o trabalho espontâneo da realidade no processo libertador pelo qual seres de paixões aflitivas alcançam a iluminação”. Como ilustrado pela conhecida história do marinheiro se afogando, que fica exausto depois de nadar por horas em busca de terra, finalmente desiste, pronto para morrer, torna suas costas para trás, e realiza que o oceano está “apoiando” ele sem ele ter de fazer nada, realidade está nos ensinando e nos apoiando, e nós podemos ter fé nisto. “Nesse processo, a afirmação do mahayana de que “samsara é nada mais do que nirvana” ou “as paixões aflitivas nada mais são do que o despertar” é afirmada, para que o fim do caminho da Terra Pura reside nesse mundo, no trabalho compassivo para a liberação de todos os seres”.

Fontes:

Thomas P. Kasulis: Engaging Japanese Philosophy

Dennis Hirota: Japanese Pure Land Philosophy entry in the Stanford Encyclopedia of Philosophy

Inner altar of a Jodo Shinshu ornate butsudan (family shrine)

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