Anarquismo Budista na Era do Fim do Dharma

Comentários ao Cakkavatti-Sihanada Sutta

Shaku Shin Gi

1. Introdução

O budismo mahayana separa a história humana em três eras: a Era do Dharma Correto (shōbō), que ocorreu nos primeiros 500 anos após o nascimento do Buda Shakyamuni, onde a iluminação era plenamente possível e os ensinamentos do Buda eram mantidos; a Era do Dharma Figurado (zōhō), nos 500 anos após a era shōbō, onde o ensinamento e a prática budista ainda existem, mas deteriorados e sem iluminação comprovada; e, finalmente, A Era do Fim do Dharma (mappō), na qual gradualmente todos os ensinamentos legados pelo Buda se extinguirão, a vida espiritual sofrerá uma degradação universal, o Dharma correto será subvertido e profanado, e o sofrimento se intensificará em todos os aspectos da vida. Vivemos atualmente nesta Era, que só encontrará seu término com a vinda de Maitreya, o Buda do futuro. 

O anarquismo budista propõe a construção de uma sociedade livre dos sofrimentos hierárquicos, mercadológicos e estatais, a partir de uma visão budista. Mas o que será que isso significa quando colocamos em conta a Era do Fim do Dharma? Será que é possível construir uma sociedade assim em larga escala, quando estamos em uma Era de declínio moral, político e dharmico? Este ensaio busca explorar essa questão. 

2. Impossibilidades

Muitos teóricos do anarquismo e socialismo budista, desde o Ven. Monge Taixu, descrevem o movimento como uma construção da Terra Pura na Terra – ou, pior ainda, uma Terra Pura no “mundo real” – e, embora sejam muito bem-intencionados e dignos de nosso louvor e estudo, devemos encarar isso como uma impossibilidade. Reflexos da Terra Pura podem ser vislumbrados em nosso mundo, e podemos trazer fragmentos desta Terra para o nosso ambiente, mas afirmar que podemos transformar o mundo Sahā em uma Terra Pura é equivalente a dizer que podemos “consertar” o samsara, algo que Buda declarou impossível. Nossa existência é inerentemente marcada pelo sofrimento, e como seres iludidos, não podemos, nem devemos, alterar essa natureza fundamental. 

Alguns sutras descrevem a possibilidade do surgimento de monarcas justos que giram a Roda do Dharma, capazes de construir, em larga escala, sociedades verdadeiramente budistas, compassivas e, consequentemente, socialistas. No entanto, desde o início da Era do Fim do Dharma, isso deixou de ser uma possibilidade. A história nos mostra que a política compassiva, motivada pelo budismo ou outras formas de amor, já não encontra espaço significativo em nossa sociedade. Grandes estados que tentaram instaurar o socialismo se degeneraram e reverteram ao capitalismo, caso tenham alcançado algum dia o socialismo. Nenhuma grande revolução ocorreu após o século 20, e mesmo que ocorra, será inevitavelmente esmagada pelo comércio capitalista global. Por mais bem-intencionados que sejam os socialistas estatais, é inviável manter um Estado Socialista em um mundo capitalista globalizado. 

A ideia de uma revolução global, anarquista ou estatal, também é uma impossibilidade. O sistema imperial tem uma força bélica praticamente invencível, mas não apenas isso: o capital, com o advento da internet mundial, mantém um monopólio cultural e pedagógico invicto. Tudo isso é consequência da Era do Fim do Dharma, onde, superficialmente, Mara triunfa sobre Buda. Devemos aceitar que não terá uma revolução tão cedo. Isso significa que nós estamos presos no maraísmo para sempre? Não! Isso porque o capital, como uma entidade viva, é insustentável.

3. Colapso e Comunismo Messiânico

Não podemos, através de nosso próprio poder, destruir O Capital. Contudo, podemos contar com sua autodestruição. Essa autodestruição marcará o fim do maraísmo, da Era do Fim do Dharma, e a vinda de Maitreya, que trará consigo o comunismo. Tudo isso é descrito no Cakkavatti-Sihanada Sutta (DN26), o sutra d’O Rugido do Leão ao Girar a Roda. Este sutra narra a trajetória da existência, desde o Comunismo Primordial, que existia antes de nós, até o colapso social global, seguido pela construção de uma sociedade compassiva e a vinda do Buda Maitreya, que trará a dissolução definitiva do Estado. Vamos observar alguns trechos desse sutra: 

“[…] 2. “Certa vez, bhikkhus, houve um monarca chamado Dalhanemi que girou a roda, um monarca justo que governou de acordo com o Dhamma; conquistador dos quatro pontos cardeais, que estabeleceu a segurança no seu reino e que possuía os sete tesouros… Ele tinha mais de mil filhos que eram corajosos e heróicos e que aniquilavam os exércitos inimigos. Ele governava tendo conquistado esta terra circundada pelo mar, sem bastão ou espada, através do Dhamma. Mas se ele deixasse a vida em família e seguisse a vida santa, então ele se tornaria um arahant, um Buda perfeitamente iluminado, aquele que remove o véu do mundo.
3. “Depois de muitas centenas e milhares de anos o Rei Dalhanemi disse para um certo homem: ‘Meu homem, no momento em que você vir que a Roda Preciosa tenha deslizado da sua posição, relate isso para mim.’ – ‘Sim, senhor,’ o homem respondeu. E depois de muitas centenas e milhares de anos o homem viu que a Roda Preciosa havia deslizado da sua posição. Vendo isso, ele relatou esse fato ao Rei. Então o Rei Dalhanemi mandou buscar o seu primogênito, o príncipe herdeiro, e disse: ‘Meu filho, a Roda Preciosa deslizou da sua posição. E eu ouvi dizer que quando isso acontecesse para um monarca que gira a roda, ele não teria mais muito tempo de vida. Eu estou saciado dos prazeres humanos, agora é o momento de buscar os prazeres divinos. Você, meu filho, assuma o controle desta terra circundada pelo oceano. Eu irei raspar o meu cabelo e barba, vestirei os mantos de cor ocre e deixarei a vida em família pela vida santa.’ E tendo instalado, da forma requerida, o seu filho mais velho como rei, o Rei Dalhanemi raspou o seu cabelo e barba, vestiu os mantos de cor ocre e deixou a vida em família pela vida santa. E sete dias depois que o sábio real havia seguido a vida santa, a Roda Preciosa desapareceu.
4. “Então um certo homem veio até o Rei Khattiya ungido e disse: ‘Senhor, você deve ser informado que a Roda Preciosa desapareceu.’ Em vista disso o Rei sentiu pesar e tristeza. Ele foi até o sábio real e relatou-lhe o que havia acontecido. E o sábio real disse: ‘Meu filho, você não deve sentir pesar ou tristeza pelo desaparecimento da Roda Preciosa. A Roda Preciosa não é uma herança de família. Mas agora, meu filho, você precisa se tornar um Monarca que gira a roda. E então poderá ocorrer que, se você realizar os deveres de um Monarca que gira a roda, no Uposatha do décimo quinto dia, tendo lavado a sua cabeça e ido para o terraço no topo do palácio para o dia de Uposatha, a Roda Preciosa surgirá para você, com mil raios, com a roda, o cubo, completa em todos os aspectos.’
[…]
8. “E um segundo Monarca que gira a roda fez o mesmo e um terceiro, um quarto, um quinto, um sexto e um sétimo monarca também …. disse para um certo homem vigiar se a Roda Preciosa deslizasse da sua posição (igual ao verso 3). E sete dias depois do sábio real ter seguido a vida santa, a Roda Preciosa desapareceu.
9. “Então um certo homem veio até o Rei e disse: ‘Senhor, você deve ser informado que a Roda Preciosa desapareceu.’ Em vista disso o Rei sentiu pesar e tristeza. Mas ele não foi até o sábio real para lhe perguntar sobre os deveres de um Monarca que gira a roda. Ao invés disso, ele governou o povo de acordo com as suas próprias ideias, e sendo assim governado, o povo não prosperou tão bem quanto havia prosperado sob os reis anteriores, que haviam realizado os deveres de um Monarca que gira a roda. Então os ministros, conselheiros, funcionários do tesouro, guardas e porteiros e os recitadores de mantras vieram até o Rei e disseram: ‘Senhor, enquanto você governar o povo de acordo com as suas próprias ideias, diferente da forma que ele foi governado sob os monarcas anteriores, o povo não irá prosperar bem. Senhor, há ministros … no seu reino, nós mesmos inclusive, que preservaram o conhecimento sobre como um Monarca que gira a roda deveria governar. Pergunte-nos, Majestade e nós lhe diremos!’
10. “Então o Rei ordenou que os ministros e todos os demais se reunissem e ele os consultou. E eles explicaram os deveres de um Monarca que gira a roda. E tendo ouvido o que eles disseram, o Rei estabeleceu guarda , defesa e proteção, mas ele não atendeu as necessidades dos necessitados e como resultado a pobreza se espalhou…
[…]
14. “Assim, por não haver generosidade para com os necessitados, a pobreza se disseminou, do incremento da pobreza, o tomar o que não é dado se disseminou, do incremento do roubo, o uso de armas se disseminou, do incremento do uso de armas, o ato de tirar a vida se disseminou e do incremento do ato de tirar a vida, o tempo de vida das pessoas diminuiu, a sua beleza diminuiu e como resultado da diminuição do tempo de vida e da beleza, os filhos daqueles cujo tempo de vida havia sido oitenta mil anos passaram a viver apenas quarenta mil. E um homem da geração que viveu por quarenta mil anos tomou algo que não lhe foi dado. Ele foi trazido perante o Rei que lhe perguntou: ‘É verdade que você tomou algo que não lhe foi dado – que é chamado de roubo?’ – ‘Não, Majestade,’ ele respondeu, dizendo assim uma mentira deliberada.”

Podemos perceber que, antes de toda nossa existência, antes mesmo da existência do primeiro humano como conhecemos, em tempos primordiais além da história, existia uma sociedade justa, onde todas as necessidades básicas eram atendidas, a pobreza era inexistente e a harmonia era universal. No entanto, a partir da primeira negligência para com os necessitados, a sociedade começou a ruir. Com a quebra desse socialismo primordial, todos os problemas da humanidade tiveram início. 

Devemos considerar que a linguagem monárquica deste texto, nesse contexto, era uma forma que o Buda Histórico utilizava para explicar a existência de um Comunismo Primordial para uma audiência familiarizada apenas com a monarquia como sistema. Esse comunismo primordial existia tanto simbolicamente quanto literalmente – a literalidade, neste caso, não se manifesta em nosso plano de existência, mas em outros planos de existência que se transformam no nosso em um longo processo – não significando, necessariamente, uma monarquia literal. 

Após o fim temporário desse Comunismo Primordial, a sociedade começou um processo de regressão de sistemas búdicos para sistemas máricos. Obviamente não como um regresso linear – o feudalismo, com certeza, não é mais búdico que o capitalismo –, mas também não como uma ideia de progresso, do pior sistema para o melhor sistema – o comunismo primitivo pode ser considerado mais búdico que os sistemas posteriores. Porém, além de o sutra descrever como nós chegamos onde estamos, ele também descreve para onde nós vamos. Vejamos:

“19. “Bhikkhus, virá um tempo em que os filhos dessas pessoas terão um tempo de vida de dez anos. E com isso, as meninas estarão prontas para casar com cinco anos de idade. E assim, estes sabores desaparecerão: manteiga líquida, manteiga, óleo de sésamo, melaço e sal. Para essas pessoas o grão de kudriisa será o alimento principal, da mesma forma como o arroz e o caril (curry) são hoje. E com elas, os dez tipos de conduta virtuosa irão desaparecer por completo e os dez tipos de conduta não virtuosa irão prevalecer: para aqueles que possuírem um tempo de vida de dez anos não haverá uma palavra para ”virtude” então, como poderá haver alguém que pratique ações virtuosas? Aquelas pessoas que não tenham respeito pela mãe e pelo pai, por contemplativos e Brâmanes, e pelo cabeça do clã, serão aquelas que desfrutarão de honra e prestígio. Tal como é agora com as pessoas que demonstram respeito pela mãe e pelo pai, por contemplativos e Brâmanes, e pelo cabeça do clã, que são elogiadas e honradas, assim será com aqueles que fizerem o oposto.
20. “Entre aqueles com um tempo de vida de dez anos ninguém irá se dar conta de mãe ou tia, da cunhada da mãe, ou da esposa do mestre, ou da esposa do pai de alguém, e assim por diante – haverá completa promiscuidade no mundo igual a bodes e cabras, porcos e porcas, cães e chacais. Entre eles, haverá forte inimizade, ódio violento, raiva violenta e pensamentos de matar, mãe contra filho e filho contra mãe, pai contra filho e filho contra pai, irmão contra irmão, irmão contra irmã, da mesma forma como o caçador sente ódio pelo animal que ele está caçando.
21. “E para aqueles com um tempo de vida de dez anos, haverá um tempo de ‘intervalo das espadas’ de sete dias, durante o qual eles verão um ao outro como animais selvagens. Espadas afiadas irão surgir nas mãos deles e o pensamento: ‘Ali está um animal selvagem!’ eles irão matar uns aos outros com aquelas espadas. Mas haverá alguns que irão pensar: ‘Não matemos mais ou que não haja mais mortes! Vamos para florestas remotas, rios difíceis de atravessar, ou montanhas inacessíveis, e vivamos das raízes e frutas da floresta.’ E isso eles fazem por sete dias. Então, ao final dos sete dias, eles emergem dos seus esconderijos e se regozijam em comunhão dizendo: ‘Seres bons, vejo que vocês estão vivos!’ E então o seguinte pensamento irá ocorrer nesses seres: ‘Foi só por termos nos habituado aos modos ruins e prejudiciais que sofremos a perda dos nossos semelhantes, façamos o bem! Que coisas boas poderemos fazer? Vamos abster-nos de tirar a vida – essa será uma boa prática.’ E assim eles se abstêm de tirar a vida e, tendo adotado essa ação benéfica, eles a praticarão. E por ter realizado essas coisas benéficas, o seu tempo de vida se incrementa e a beleza se incrementa. E os filhos daqueles cujo tempo de vida havia sido dez anos passaram a viver vinte anos.”

O capitalismo é um sistema insustentável, promovendo o ódio e o individualismo extremo. Dentro do sistema capitalista, as condições de vida das pessoas só pioram, a destruição da natureza aumenta incessantemente, e uma explosão social diante dessas condições é inevitável, conforme descrito no sutra. 

O capitalismo, através de suas próprias políticas, traz sua própria destruição. Isso que chamamos de inevitável colapso. Não podemos fazer a revolução com nossas próprias mãos porque não podemos fazer nada a partir de nosso poder próprio. Toda mudança histórica, todo fim do mundo: tudo é construído a partir de condições karmicas que estão fora do nosso alcance, que não podemos controlar. Não pode existir a visão de uma supremacia humana sobre a existência, nós fazemos parte do processo, mas não somos os dirigentes. Por isso o capitalismo é uma entidade própria, que não é mais controlado (se é que um dia já foi) pelos humanos, mas se tornou um ser que tem como único objetivo final sua própria aniquilação, e que nesse processo destrói tudo que vê pela frente.

Nesse sentido, podemos ver que o comunismo também não é uma obra humana, mas uma obra que funciona além da humanidade, que se constrói apesar da nossa vontade. O comunismo é Amida se manifestando como Maitreya para a nossa Salvação. O comunismo é tanto messiânico quanto escatológico. Só pode existir após esse colapso que significa o fim do mundo como conhecemos, mas significa também o nascer de um mundo totalmente novo, livre de todas as amarras impostas por Mara. Amida é tanto a destruição das coisas como conhecemos, quanto a construção do Novo.

Como descrito no sutra, após esse colapso social nós construiremos, juntos, uma sociedade melhor. Somente através de um colapso social, e não de uma revolução “clássica” dirigida por um partido ou grupos revolucionários, podemos exercer uma verdadeira ética da consequência. Uma ética que surge espontaneamente através da compaixão, contrastando com uma ética do resultado, que é egoísta. Apenas assim podemos reconhecer a limitação de nosso poder próprio e ter gratidão por toda essa estrutura kármica além do nosso controle e compreensão. 

Testemunhar todo esse sofrimento é o que permite o nascimento da compaixão, o nascimento de um movimento coletivo que preza pela vida e bem-estar de nossos irmãos. O sofrimento é a faísca da compaixão, e sem um, não existe o outro. Esse colapso, embora horrível, é o que permitirá a cooperação mútua e a vinda de Maitreya, que retornará com o Comunismo Primordial e, finalmente, dissolverá o Estado e todas as amarras sociais do sistema maraísta.

A tristeza ao ver a piora da existência é inevitável, porém devemos transformar essa tristeza em alegria, ver que quanto mais as coisas pioram, mais perto estamos do fim de todas as dores, mais perto estamos do fim do Fim, da vinda de Maitreya e do comunismo. Dentro desse sofrimento coletivo há a Luz de Amida, pois essa Luz alcança todo lugar que podemos olhar. Dentro do sofrimento social ou pessoal há uma fagulha de esperança para um futuro melhor. Assim, o sofrimento se torna compaixão, que se torna amor, que se torna alegria, que se torna gratidão. Obrigado, Amida, por nos mostrar sua Luz. Obrigado, Mara, por se autodestruir. Obrigado, Maitreya-Amida, por nos salvar no fim dos tempos! Obrigado pelo colapso! Nessa lógica das contradições nós afirmamos: quanto pior, melhor!

“24. “E na época das pessoas com um tempo de vida de oitenta mil anos, irá surgir na capital Ketumati um rei chamado Sankha, um monarca que irá girar a roda, um monarca justo de acordo com o Dhamma, conquistador dos quatro pontos cardeais… (igual ao verso 2).
25. “E na época das pessoas com um tempo de vida de oitenta mil anos, irá surgir no mundo um Abençoado chamado Metteyya (Maitreya), um arahant, perfeitamente iluminado, consumado no verdadeiro conhecimento e conduta, bem-aventurado, conhecedor dos mundos, um líder insuperável de pessoas preparadas para serem treinadas, mestre de devas e humanos, desperto, sublime. Ele irá declarar – tendo realizado por si próprio com o conhecimento direto – este mundo com os seus devas, maras e brahmas, esta população com seus contemplativos e Brâmanes, seus príncipes e povo. Ele irá ensinar o Dhamma, com o significado e fraseado corretos, que é admirável no início, admirável no meio, admirável no final; e ele irá revelar uma vida santa que é completamente perfeita e imaculada. Ele será acompanhado por milhares de bhikkhus tal como eu sou acompanhado por centenas.
26. “Então o Rei Sankha irá reconstruir o palácio que uma vez foi construído para o Rei Maha-Panada e tendo ali vivido, ele irá renunciá-lo e presenteá-lo para os contemplativos e Brâmanes, os mendigos, os transeuntes, os destituídos. Então, raspando o cabelo e a barba, ele irá vestir os mantos de cor ocre e deixar a vida em família pela vida santa sob a orientação do supremo Metteyya. Permanecendo só, isolado, diligente, ardente e decidido, em pouco tempo, ele alcançará e permanecerá no objetivo supremo da vida santa pelo qual membros de um clã deixam a vida em família pela vida santa, tendo conhecido e realizado por si mesmo no aqui e agora.”

4. Então o que fazer agora?

“Quanto pior, melhor” não significa que nós, ativamente, devemos “piorar” a situação. O colapso e a vinda de Maitreya já tem data marcada, e independe das nossas ações. Justamente por isso que nós devemos fazer o máximo para aliviar esses sofrimentos. Já que não podemos acelerar esse processo, então devemos fazer ele ser o menos pior para todos os seres. Muito menos devemos ficar parados sem fazer nada, senão por que o Buda teria nos incentivado a sermos bodhisattvas que trabalham pela libertação dos seres?

Nosso movimento, ao contrário do niilismo, é um movimento afirmativo, não negativo. Essa afirmação não surge de nós, ela surge espontaneamente, como uma forma de gratidão após termos contato com a Luz de Amida, seja através do sofrimento ou da compaixão. Esses movimentos afirmativos não são ação do nosso poder próprio, é Amida agindo através de nós. No momento em que agimos com compaixão, nos tornamos também uma imagem tal qual a de Maitreya, trazemos um pouco do futuro comunista para o nosso presente. Assim, melhoramos a nossa vida e a dos nossos iguais. Foi isso que Shinran fez ao ensinar o Dharma aos povos marginalizados do Japão.

Vivemos em tempos desafiadores, onde a prática do Dharma é cada vez mais difícil e a sociedade está em constante deterioração. No entanto, isso não significa que devemos desistir. Pelo contrário, devemos redobrar nossos esforços para viver de acordo com os ensinamentos do Buda, construir comunidades de apoio e preparar-nos para o colapso inevitável do capitalismo.

O anarquismo budista, embora não possa se concretizar plenamente na Era do Fim do Dharma, oferece um caminho de resistência e esperança. É uma prática de compaixão e amor, que busca aliviar o sofrimento e preparar o terreno para a vinda de Maitreya e a construção de uma nova sociedade.

Necessitamos sempre lutar, mesmo sabendo da nossa vitoriosa derrota. A luta, mesmo que não traga uma “vitória”, nos ajuda a avançar com o Dharma, a levar os ensinamentos do Buda a mais pessoas, a possibilitar que cada vez mais a Luz seja percebida. “Não se pode ser humano sem lutar, mas não é aqui que se vence. Aqui apenas se pode lutar. A acomodação ao apego arrasta-nos a um sofrimento ainda maior.” diz Rev. Gustavo Shogyo em seu texto sobre Rennyo Shonin.

Devemos tomar a ação de construir Sanghas radicais, espaços dispostos a aceitar todas as pessoas e oferecer no agora condições materiais de vidas melhores que proporcionam o cultivo a espiritualidade, custe o que custar. Temos que ter ilhas comunistas-budistas dentro desse mar capitalista-maraísta. Agir com compaixão é agir radicalmente, às vezes até mesmo agressivamente. Agir com compaixão é bater de frente com esse sistema, é construir alternativas inclusivas e não permitir a perseguição a nós e aos nossos iguais. O artigo “Práxis Anarquista-Budista”, de Mx. Flow, nos dá um bom horizonte do que podemos fazer aqui e a partir de agora. Devemos propagar o Dharma através da luta justa, defendendo os marginalizados e percebendo que somos todos parte desses. Não devemos nos ver como um movimento exterior que vai trazer a salvação, mas sim como o povo se salvando coletivamente. E devemos sempre ter o budismo como guia dessa construção compassiva. 

Aceitar que a Era do Fim do Dharma nos impossibilita de construir a nossa utopia socialista-budista não significa desistir de toda forma de ação, não significa desistir da Revolução Budista. Não devemos nem mesmo deixar esse horizonte de lado, pois apenas a luta por essa sociedade pode permitir a construção de alternativas reais na sociedade atual. Significa apenas enxergar um horizonte mais aberto, onde nós já estamos salvos. Significa poder ver novas e mais criativas maneiras de conduzir essa revolução constante e de possibilitar a vivência do anarquismo agora, através do Buda, do Dharma e da Sangha. Pois, como não temos nada para fazer, podemos fazer tudo. Apenas deixe a compaixão de Amida agir através de você. 

Namu Amida Butsu.