Tradução do texto original “Anarchist-Buddhist Praxis”, escrito por Mx. Flow. Tradução feita integralmente pelo Blog Contra. Uso livre para copiar e distribuir. Acesse aqui o texto original e acesse aqui a versão publicada no theanarchistlibrary.


Práxis Anarquista-Budista

Um pequeno ensaio para um futuro esperançoso

Mx. Flow

Anarquismo, uma ideologia que reivindica autonomia para todas as pessoas, com facetas comuns de livre associação (federação como um processo de formar associações igualitárias sem coerção governamental), apoio mútuo, e ação direta combina bem com ideias comuns presentes no Budismo. O Budismo defende em seus suttas (escrituras dos ensinamentos do Buda) que para poder praticar o Dhamma (os ensinamentos) nós devemos ter os quatro requisitos para a prática: comida, teto, medicina e roupa. Se alguém não tiver um ou mais destes requisitos, essa pessoa terá dificuldades para implementar o Dhamma e se envolver com a Sangha (comunidade de budistas). No Vinaya (código de disciplina monástica) não há presença de uma hierarquia forte, aos monásticos individuais não é concedido mais poder institucional do que outros monásticos. As responsabilidades individuais são distribuídas (como alguém que presta contas do armazenamento de alimentos) e são eleitas e imediatamente revogadas pela Sangha. Há expectativas sociais reconhecidas de que os monásticos mais experientes devem ser respeitados (respeitamos o sapateiro na fabricação de calçados e o monástico no Dhamma), mas esses monásticos experientes não têm (ou melhor, não tinham originalmente) poder coercitivo para obrigar outros monásticos a algum serviço ou ação específica: se algum monástico sentir que fazer algo é quebrar com o Dhamma, ele não deveria fazer isso nem mesmo se um monástico experiente o solicite.   

Sintetizando budismo com anarquismo nós produzimos um Budismo Anarquista, que tem foco em garantir os quatro requisitos para todos através da Sangha (uma ênfase no comunalismo) e, ao fazê-lo, capacitar uma forma superior e mais desejável de autonomia (a autonomia para praticar o Dhamma e/ou viver livremente, não a autonomia para lutar e sobreviver em isolamento). Uma práxis anarco-budista procura prover os quatro requisitos para todas as pessoas, sabendo que sem esses requisitos elas não podem se aproximar ou praticar seriamente com o Buddha, Dhamma e Sangha. Ao fornecer esses requisitos, entende-se que a coerção (força) não pode trazer ninguém para o Dhamma, que ninguém mais pode praticar por você (você deve ser a vanguarda de sua própria libertação) e você deve ter autonomia para poder praticar o Dhamma genuinamente. Como anarco-budistas, afirmamos que a maneira mais eficaz, compassiva e virtuosa para conduzir as pessoas à tríplice jóia do Buddha, Dhamma e Sangha é fornecer os requisitos materiais sem coerção ou hierarquia, para permitir que as pessoas existam com um alto grau de autonomia em que elas possam perceber o Dukkha (sofrimento, estresse, insatisfação) do mundo e buscar um fim para isso através da prática de Sila, Samadhi e Paññā (virtude, concentração, sabedoria). 

Como isso é, praticamente? Como nós podemos praticar Budismo Anarquista hoje? Nesse caso, podemos dividir as ações em dois tipos principais:

  1. Fornecimento imediato dos quatro requisitos para todas as pessoas, sem exigências ou coerção
  2. A construção da Sangha de um modo que garanta esses requisitos e autonomia agora e amanhã

O primeiro ponto de fornecimento imediato é experimentado quando damos comida a uma pessoa faminta, prestamos cuidados médicos, distribuímos casacos para quem está com frio e damos casas para quem não tem. É uma solução atual, embora temporária, para um problema de longa data: um sanduíche só dura até ser comido. Esse tipo de práxis é imediatamente benéfica, é uma prática crucial de Sila, para proporcionar aos outros a oportunidade de enxergar o Dhamma. No entanto, estes auxílios por si só não são suficientes para garantir um acesso consistente e a longo prazo aos requisitos, são apenas paliativos temporários sob um sistema capitalista imperialista que exige que alguns fiquem sem comida para que outros possam comer em mesas de ouro cheias de caviar. Para eliminar aqueles que vivem sem os requisitos para a prática, devemos revolucionar a sociedade para prover comida, medicina, abrigo e vestuário para todas as pessoas, independentemente de quem sejam, do que fizeram, farão ou estão fazendo.

Nós podemos começar a criar o tipo de Sangha que proporciona a todos, criando comunidades que sejam horizontais (não-hierárquicas), independentes, autossustentáveis e que tenham uma cultura de ajuda material mútua. Nós podemos cultivar o bem-estar básico necessário para enxergar o Buddha, Dhamma e Sangha. Ao criar comunidades independentes do estado e do capitalismo, capacitamos-nos para prover eficazmente a nós próprios e aos que nos rodeiam. Praticamente isso envolve aquisição de terra, criação autossustentável de bens materiais (ou seja, reciclagem, agricultura e manufatura sustentáveis) e uma atitude cultural de doação compassiva a todos que não têm. Ao criar estruturas comunais fora do braço do estado, nós podemos criar a casca do novo mundo dentro do antigo. Resistir às instituições culturais e estatais hiper individualistas, consumistas e hierárquicas, vivendo deliberadamente com autonomia e compaixão.

Como isso é, na realidade? As etapas materiais envolvem, primeiro, reunir uma comunidade de pessoas com valores e crenças semelhantes. Tal como através de vínculos em espaços anarquistas e budistas existentes. Depois, encontrar um local para a comuna e adquiri-la. A comunidade pode então começar a construir estruturas para moradia, prática religiosa, prazeres, alimentação e assim por diante. A longo prazo, a comunidade pode iniciar práticas de apoio mútuo e ação direta nas áreas ao redor, até mesmo somente pela existência como um povo livre, nós demonstramos a possível alegria e paz de viver além do estado. A implementação realista disso percorre dois espectros:

  1. Ilegalista vs. Dentro do sistema
  2. Autossustentável vs. Integração ao sistema existente

Para o primeiro, é uma questão de quais regras uma comunidade irá ou não seguir. Terra é considerada propriedade privada e dentro da alçada do estado exige títulos e dinheiro para seu uso, uma determinada comunidade pode ocupar ou confiscar de outras formas a terra para seu uso próprio (sendo ilegalista) ou procurar reunir recursos e adquirir legalmente tais terras (dentro do sistema). Isso não é uma condição binária, uma comunidade pode procurar adquirir terras legalmente apenas para construir edifícios secretamente fora dos códigos de construção existentes para a evitar impostos, uma comunidade pode contornar a lei fazendo vários reboques móveis não considerados nos códigos de construção. Pegar plantas patenteadas pertencentes a empresas e usar sua genética geneticamente modificada para cultivar alimentos secretamente, sem pagar às empresas. Buscar recursos ou bens no lixo do Walmart, há um amplo espectro entre curvar-se ao estado quando é mais eficaz e desobedecer aos seus ditames quando é adequado à comunidade específica.

Para o segundo, muitas vezes pode ser uma questão das circunstâncias da comunidade. Há terra arável onde a comunidade se encontra? Há leigos capazes em número suficiente para cultivar o solo? É possível perfurar um poço e cultivar têxteis? Estas circunstâncias são altamente específicas e sujeitas a alterações. Uma determinada comunidade pode começar por transportar água de uma fonte externa apenas para construir um poço dentro de alguns anos, da mesma forma com alimentos, têxteis e eletricidade. Felizmente, existem recursos cada vez mais vastos de informação acessível sobre agricultura sustentável, sistemas elétricos autônomos e formas independentes de criar tudo o que precisamos, desde brinquedos sexuais e instrumentos musicais até equipamento agrícola e medicamentos. Em uma situação ideal uma determinada comunidade pode se tornar totalmente independente do sistema existente, o que significa tornar-se independente do capitalismo e do estado. Embora isto seja muitas vezes inacessível no início ou impossível sem um apoio intercomunitário muito mais amplo, deveria ser um objetivo almejado.

E daí se fizermos isso? O que acontece se desconsiderarmos as reivindicações do estado sobre cada árvore e cada extensão de terra, cada alimento que cresce naturalmente e cada corpo humano, para afirmar que todos os seres têm um direito à autonomia e que através da consagração da autonomia e do fornecimento ao corpo nós capacitamos a todos os seres que alcancem o Nibbana (iluminação, fim de Dukkha). O estado, eventualmente vendo uma ameaça ao seu poder, tentará policiar ou destruir completamente tais desafios. Através da tributação da Sangha para apoiar seus esforços militares imperiais e policiais, através de que qualquer comunidade siga os ditames do estado (lei) independentemente do que o Dhamma diz, como no serviço militar obrigatório, leis imorais, propriedade privada, privação de necessidades materiais para os pobres e a exigência de que qualquer terra usada pela comunidade seja adquirida através de propriedade privada regulamentada pelo estado, independentemente de estar sendo usada como propriedade financeira ou como uma terceira casa dos ricos. Existem muitas táticas que podemos empregar para evitar ou subverter a ira do estado, ofuscando projetos de construção, recusando os seus ditames e até mesmo defendendo as nossas comunidades com o uso da força quando o estado procurar nos erradicar. Podemos recorrer a práticas de ocupação de edifícios e terrenos não utilizados sem a permissão do estado, resistência não-violenta, autodefesa armada, práticas industriais e agrícolas sustentáveis, tomada de decisão igualitária e associação livre para criar uma Sangha e, definitivamente, um mundo livre de coerção e privação material. Nós podemos criar um mundo com liberdade e autonomia genuínas, um mundo onde ninguém passe fome, frio ou fique sem cuidados. Podemos criar o tipo de Terra Pura que conduz diretamente ao despertar, se trabalharmos juntos com intenção e força de vontade.

O caminho para um mundo belo e uma Sangha próspera não é isento de dificuldades. A prática é muitas vezes difícil e exige muito de nós. Somos solicitados a mudar a forma como pensamos e o que fomos condicionados a fazer e acreditar. No entanto, se seguirmos o Dhamma e vermos os outros como eles realmente são, então o amanhã poderá ser melhor, se trabalharmos juntos.